*Escreva uma história em que a fala “– Sabes que mais é que as crianças não sabem?” esteja, algures, presente.*
Oxalá fosse apenas mais uma história, uma encruzilhada de palavras balbuciadas sem destino, por bocas de alguém que passa despercebido pela sombra dos olhos sedentos do mundo. Antes fosse um simples labirinto de letras rumo a perdermo-nos nos sentidos, correndo incessantemente o olhar pelas linhas, lutando contra o passar do tempo que nos flui entre os dedos ao folhearmos aquele estranho objecto que parece envolto numa aura de mistério: livro.
Porém, não é essa a razão pela qual me sento na velha cadeira de baloiço onde outrora vos contava histórias, sentados no meu joelho, maravilhados com cada volta que dá o desenho de uma simples letra manuscrita, e me tremem as mãos e me escorrem lágrimas pelos socalcos de uma face inóspita, onde murchas estão as rosas com espinhos – regadas por tristeza, alimentadas à luz do desespero – onde se encontram gravadas as marcas da enxada: cruel e impiedosa, com que lavraram sem dó as garras da tristeza.
Hoje sinto-me apenas eu, um eu que, se pudesse, se deixava absorver pelo papel com vergonha de si mesmo. Um eu de letra tremida, insegura como este eu que escreve, hoje sinto-me uma folha amarrotada a arder envolto nas chamas desta fogueira de cinza negra que alimenta o riso maléfico e frio do meu velho inimigo: Consu Mismo.
Como pude deixar que o mundo chegasse onde está hoje? Felizes na correria banal do dia-a-dia sem sequer se aperceber da alegria sintética pela qual se deixam envolver. Onde o dinheiro, a luxúria, a ilusão de serem donos da própria vida alimenta sorrisos fabricados em série, dando lugar à verdadeira essência do ser.
E hoje escrevo-te a ti, entidade sem nome que me manténs olhando de frente para a vida. Chamam-me Deus, mas hoje sou apenas um minúsculo eu. Falhei, deixei-os cair em tentação. Mas como podia eu evitá-lo se tudo o que o vêem são imagens psicadélicas que lhes cegam o que neles há de mais puro e natural? O Consu Mismo impregnou-se nas suas vidas e tudo a que dão ouvidos é produto marcado pela vileza do seu olhar.
Sabes que mais é que as crianças não sabem? As crianças e os adultos, a humanidade há muito se esqueceu do valor das palavras, dos sorrisos, dos olhares sinceros. À humanidade falta a essência das histórias que contava, na velha cadeira, a pulsar nas veias, quando a brancura da minha barba era ainda imaginação.