28/05/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 4ª Jornada: "Flor-Camila"





*Escreva uma história que anule completamente o velho provérbio: “quem te avisa, teu amigo é”.*


Ela tinha-te avisado… mais que uma amiga, mais do que uma filha, o brilho da tua vida… e tu, pensando tratar-se de mais um insignificante capricho das fases de miúda, ignoraste… não ouviste e deixaste que mais uma vez, sub-repticiamente, a onda de preocupações e “correrias” típicas da vida adulta te envolvesse, abafando os seus últimos avisos que ouvias em surdina e te passavam ao lado…
Camila passava os dias olhando a imensidão do nada, como quem queria absorver todas as partículas, todas as moléculas e átomos do mundo que a rodeava… ela deixou-te tantas pistas! Tantos trilhos que ignoraste… que podiam ter evitado um fim para um princípio ainda pintado de fresco… Agora a culpa bate-te à porta e tu, verme fraco, deixa-la entrar, na esperança que preencha a sombra de Camila… não… a culpa pode fazer-te companhia todo o tempo, todo o espaço, todo o momento do resto da tua amarga vida, mas o brilho de Camila, esse, nunca o terás novamente…
Agora a onda que te envolve é outra… bem sei, mesmo que penses que consegues esconder, que vês e revês as poucas memórias que tens em que estavas com ela verdadeiramente… Lembras-te daquela manhã? Camila caminhou para o teu quarto de pijama e chinelos, enroscou-se ao teu lado e sussurrou-te ao ouvido: “Pai, sabes qual é a lição mais valiosa que alguém pode aprender? …Viver cada dia como se fosse o último.”. E tu, ainda meio ensonado, pouco ou nada ligaste… esqueceste ou nem sequer chegaste a lembrar… Mas poucos dias faltavam… Chegaste a casa, distraído com a papelada do costume, um telefonema do chefe, um e-mail,… de súbito sentiste um arrepio na espinha que te despertou a atenção, pela primeira vez reparaste como tinha crescido a planta junto às escadas… subiste… nem sinal de Camila… ouviste barulho de água a correr e abriste a porta da casa de banho… foi então que ouviste o som da dor… Camila já havia chegado ao destino que sempre quis… os longos cabelos negros flutuavam na banheira… usava o vestido que lhe tinhas oferecido há uns anos…
No espelho embaciado lia-se “1990-2006… Adeus” …
A planta murchou passados uns dias… e regaste-a com as tuas lágrimas salgadas… decidiste dar-lhe o nome de Camila… as flores brancas da cor do vestido parecem diferentes e a cada primavera tens esperança de ver renascer a mais bela flor…

(48 pontos em 60)

20/05/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 3ª Jornada: "Rodopios da Vida"





*Um homem esbarra contra uma antiga namorada. Ao seu lado está a sua actual mulher, grávida, e duas filhas pequenas. E ele sempre dissera à sua ex que  não era o tipo de homem que iria casar e ter filhos. O que acontecerá?*


Passeava na rua, sentindo as pedras da calçada à medida que os pensamentos me levavam a um destino mais distante… pouco a pouco, a voz das miúdas foi ficando mais e mais baixa… deixei de sentir a mão da minha mulher que caminhava a meu lado, comecei a ouvir a voz da mente que pintava aos poucos manchas de um doce som – o dia tinha sido brindado por um Sol sorridente e eu aproveitava fazendo uma visita ao lugar onde o meu eu existe em liberdade. E a doce melodia transportava-me para um estado pleno que me enchia o peito de emoções.
De súbito, tudo desvaneceu, apagaram-se as manchas e calou-se o som num silêncio mudo que me ensurdeceu os sentidos. Atónito, deparo-me, numa realidade ainda difusa, com a minha ex-namorada… ou seria outra memória onde continuava a viajar? Num esforço por tornar à realidade recta, balbuciei o que a mim que soou a um bando de sons primitivos incompreensíveis, mas que no entanto obtiveram resposta… E conversámos e saboreámos o som das palavras e imaginámos como seria a vida com todos os “ses” transformados em “sims” e em “nãos”… e apercebemo-nos daquilo que mudou e do que permaneceu e do que o vento levou e das marcas que deixámos um ao outro. Em pouco tempo de conversa viajámos ao passado e ao futuro intermitente e relembrámos momentos e histórias e mergulhámos em memórias sem sequer nos apercebermos… E olhámos de relance para as danças envoltas na poeira do passado… Sim, conhecê-la foi uma dança… E aprendi com ela a ver a vida como um misto de compassos artísticos…
E realmente num espaço de poucos anos, ao ritmo de um quickstep com um cheirinho a tango, tudo tinha mudado, conheci a Mafalda em rodopios da vida, mordi a rosa vermelha num tom de sedução e entre passos a dois dançámos o tango do amor. Despertou nela o desejo de ser olhada por olhos de uma criança, e a partir daí as danças foram outras: Nasceu a Sofia há 7 anos, lembro-me como se fosse ontem… Dois anos mais tarde, o desejo voltou a bater à porta… nove meses de compasso e veio ao mundo a Raquel… Este ano, em Fevereiro quisemos dançar o tango mais uma vez, vem a caminho o Guilherme.
O palco da vida encarregou-se de mudar de bailarinos, mas eterna será sempre a memória dos nossos aplausos…




(48 pontos em 60)

18/05/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa: 2ª Jornada "Vacina da Felicidade"

         



* Desafio desta jornada: "Se pudesse inventar alguma coisa para ajudar a Humanidade, o que seria?"* 
       À medida que procurava no velho baú pedaços de emoções perdidas na infância, respirava fundo e ouvia o bater do coração numa enorme ansiedade… As cartas da tetra-avó, de um papel amarelado, puídas pelo tempo estavam cobertas de pó, deixadas ali, ao abandono dos anos, sem um raio de luz do Sol… de dentro do baú vinha um estranho cheiro de um tempo remoto… seria o perfume dela? No fundo, uma pequena fotografia de uma menina com pouco mais de cinco anos que chorava. No verso estava escrito: “2011 – Vacina da Felicidade. A picada da agulha foi a última dor que senti…”
                O que seria a dor? O assunto inquietou-me durante vários dias, passando-me pela mente vezes sem conta… seria a falta desse tipo de sensações que nos provocava esta enorme paixão pelo passado cá dentro?
                Após muito pesquisar sobre este ano tão longínquo, descobri que em 2011 foi inventada por uma mulher portuguesa, de seu nome Inês Marto, uma vacina que nos fazia esquecer tudo o que existe de mau no mundo… “A vacina contém substâncias que permitem manipular os neurónios de forma a apagar da memória cerebral todos os «sentimentos negros», eliminando a capacidade de os voltar a sentir. De forma a melhorar a qualidade de vida da humanidade, foi, a 27 de Julho de 2011, instituída uma lei mundial que torna obrigatória a vacinação de todas as crianças, jovens, adultos e idosos e de todos os bebés de gerações vindouras, assim, da humanidade eliminar-se-ão sentimentos de dor, angústia, tristeza, saudade e todos os sentimentos classificados como negativos.”. Deve ser por isso que quase ninguém sabe o porquê, nos dias de hoje… se a picada da vacina transmitia dor, sendo a dor um sentimento negativo, foi apagado da nossa mente.
                Mas porque seria que chorava se sentia a dor da vacina no momento da fotografia? Afinal se dor é um sentimento negativo, não devia chorar… Não seriam também, naquele tempo, as lágrimas sinónimas de alegria e entusiasmo?
                Que seres tão diferentes somos nós, separados pela poeira dos dias, dos meses, dos anos… gostava de ter vivido no tempo em que viveste ainda que por breves Invernos… de ter conhecido na inocência de criança os dois lados da vida: o colorido, é certo, mas também o cinzento, para saber dar valor à cor…





(47 pontos em 60)

07/05/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 1ª Jornada: "Porquê Teresa?"




Desafio: Vista a pele de um velho carro que acabou de ser pintado de novo. O que sente ele?

Porquê Teresa?
Porque é que com a cobardia de quem tem medo e com a coragem para rasgar em pedaços tudo que tivemos, me deixaste só?
Porquê Teresa?
Foi por estar presente nos momentos desumanos que viveste? Foi por conhecer de cor cada palmo desse teu instinto de animal?
Bem me lembro de todos os homens que levavas para o banco de trás, no antigo campo de trigo abandonado onde estávamos parados, o teu refúgio para saciar essa sede de loucura…
Não penses que pela mágoa que me causas por todos estes anos de abandono, consigo esquecer todos esses devaneios, esses momentos em que deixavas escapar cá para fora o fogo interior que te queimava a alma e te entregavas ao desejo…
… Não Teresa!
Em todos estes anos que vivi na solidão, na velha sucata abandonada onde me deixaste sem um pingo de tristeza, vi pessoas a passar na estrada em frente… netos, avós, mães, pais, filhos, mendigos, prostitutas e senhores de colarinho e nariz empinado… arrepios? Porquê, Teresa? São todos, todos eles, mais dignos que tu!
Ninguém conseguiria cometer tamanha atrocidade como a que foste capaz! E cometer o mesmo erro tantas vezes sem fim? Pergunto-me como é que ainda tinhas coragem de te olhar ao espelho… devias ter vergonha, Teresa! Com esse teu ar de inocência levar homens a cair nas garras da tua insanidade e devorar-lhes a alma… homens com família, com emprego, com vida… alimentavas esse prazer demoníaco e depois, para que não restasse indício, enterrava-los no velho campo de trigo.
Porquê Teresa?
Tinhas filhos e marido, é certo que podiam não ser a família com que sempre sonhaste, mas será que não se perguntavam onde estarias nessas longas horas que batiam num compasso de loucura? Será que não te apoiariam nessa doença que te destrói por dentro? Mas não… preferiste ouvir essa voz tentadora que só tu ouvias, em vez de lutar, Teresa… pobre e fraca Teresa… E agora estás só… e mandaste que me pintassem de novo e que me arranjassem para não ser descoberta a ilha da perdição desse verme que és tu… Mas ainda estão cá dentro as marcas que me deixaste, Teresa, e não descansarei enquanto não revelar as cicatrizes que me deixaste na mente.
Pensas vir buscar-me em breve agora que sou outro? Pois não te quero, doce Teresa!



(48 pontos em 60)