24/06/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 8ª Jornada: "Espírito Assimétrico"



*Escreva uma história que avance somente através do diálogo. Nada mais: nem narração, nem descrição. Nada.*


- Mas que… o que aconteceu ao carro?
- Cala-te! Perdeste a cabeça? Se continuas com essa barulheira ainda te dão mais uma injecção daquelas e, aí sim, é a morte do artista!
- Hã? Quem está aí? Aparece! Não é altura para brincadeirinhas. Importas-te de me dizer que raio de sítio é este? O que é que fizeram ao meu carro? Está quase na hora! Tenho de ir!
- Sempre foste um bocado tapado, realmente, mas tanto… já olhaste bem à tua volta?
- À direita uma mulher, do outro lado um velhote… estão tão pálidos!
- Ó meu lerdo acorda para a vida! Não vês que estão mortos?
- O quê? Vida? Mortos? Mas o que é que estou aqui a fazer?
- Olha, talvez pelo teorema de Pitágoras… ora sexta-feira, bananas, noves fora nada: Estás morto, Einstein!
- Como? Não estou a achar piada nenhuma! Mas que raio é que me havia de calhar agora… deixa-me em paz e tira-me daqui que tenho de ir para a reunião, faltam 5 minutos!
- Pois faltam, realmente faltam 5 minutos, há 3 dias atrás!
- Já chega porra! Estás a começar a irritar-me a sério! Aparece estupor antes que te parta a boca toda!
- Essa é boa, muito boa. Tu? Partires-me a boca toda? Impossível! Primeiro porque nem te consegues mexer, segundo, mesmo sendo tão estúpido, não chegas ao ponto de te auto mutilares.
- Ó palhaço, já que te achas tão inteligente porque é que não dás a cara de vez? Assim pode ser que te cuspa em cima e te deixes de gracinhas! Tira-me daqui caralho!
- A sério que devias ser comediante… e depois o palhaço sou eu! Não percebeste ainda que eu sou tu e tu és eu? Só que tu és a metade morta e eu sou a metade viva, por isso é que ainda não chegaste ao sítio cheio de unicórnios e arco-íris a que chamas céu, princesa!
- Ok, feitas as apresentações, como é que saímos daqui ó engraçadinho?
- Amigo, lamento desiludir-te, mas daqui só sais para a cova! Aproveita mas é as últimas horinhas enquanto podes e estica as pernas que algo me diz que lá em baixo vamos ficar um bocadinho ferrugentos.
- Vem aí o cangalheiro! Últimas palavras?
- Tempo para conversar é o que não nos vai faltar lá em baixo…

18/06/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 7ª Jornada: "Fim da linha"

* Um passageiro da primeira classe de um avião resolve despir-se e ficar completamente nu. O que acontece de seguida? *

                Um enorme desejo de ver cair no chão estilhaços do espelho que me mostra a imagem daquilo que não sou: foi como tudo começou. Uma viagem de negócios... palavras mais que usadas, sujas e manchadas como nódoas de vinho e de batom no colarinho branco. Pensava que eu era fiel… enganei-a, mas enganei-me a mim mesmo também, na esperança de dissuadir a própria mente, tantas vezes reneguei aquilo que era que acabei por aceitá-lo como sendo a mais pura das mentiras. A barba áspera do professor de germânicas e aquele olhar baço por detrás dos óculos nunca abandonou o meu pensamento. Deixei-lhe o bilhete na mesa da cozinha: é a despedida.
                Tarado, porco! Sempre soubeste, sempre fizeste questão de dar aso secretamente a esse lado sujo! Primeiro o rapaz do ginásio… miserável! Eras capaz de te levar a pontos de exaustão só para ficares a vê-lo pingar as gotas salgadas de suor para a toalha branca! Depois o bibliotecário… o quanto testemunharam as páginas amarelecidas da colecção dos livros da DeAgostini, que todos os sábados ias pedir à biblioteca, como pretexto para mais uma e outra vez te deleitares com aquela placa dourada na lapela e o cabelo grisalho meticulosamente penteado para trás, mudas testemunhas da tua perdição.
Não aguentei mais olhar para o meu próprio reflexo, era o fim da linha. Uma viagem para Bruxelas: a oportunidade perfeita. Podia sentir o ódio pulsar nas veias, as entranhas ardiam, uma espuma azeda nos cantos da boca e vontade de arrancar todos os cabelos um por um. Embarquei, seria a última vez que pisava terra firme. No avião, as horas passavam arrastando-se pesadamente. Um copo de whisky atrás de outro, começavam a sortir efeito.
Finalmente, despi o preconceito à medida que tirava cada camada de roupa, ficando à vista o trapo reprimido que era, deixando-me levar na embriaguez. Atónitos, alguns dos passageiros olhavam fixamente, outros desviavam o olhar. Fui directo ao cockpit, desprovido de qualquer remorso pelo que fazia: por fim, eu mesmo. O piloto gemia ajoelhado no chão sem qualquer hipótese de fuga, amordaçado pela minha própria mão, dedos gravados com impressões digitais que agora sentia me pertencerem. Aterrorizado com o que via, o co-piloto não fazia se não obedecer à voz enrouquecida por gemidos da minha insanidade. Com lágrimas nos olhos, contorcendo-se por dentro, seguiu em frente. Despenhámo-nos. Tudo o que resta é o verdadeiro e repugnante eu gritando “liberdade”.



(48 pontos em 60)

10/06/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 6ª Jornada: "As garras do Consu Mismo"

*Escreva uma história em que a fala “– Sabes que mais é que as crianças não sabem?” esteja, algures, presente.*
Oxalá fosse apenas mais uma história, uma encruzilhada de palavras balbuciadas sem destino, por bocas de alguém que passa despercebido pela sombra dos olhos sedentos do mundo. Antes fosse um simples labirinto de letras rumo a perdermo-nos nos sentidos, correndo incessantemente o olhar pelas linhas, lutando contra o passar do tempo que nos flui entre os dedos ao folhearmos aquele estranho objecto que parece envolto numa aura de mistério: livro.
                Porém, não é essa a razão pela qual me sento na velha cadeira de baloiço onde outrora vos contava histórias, sentados no meu joelho, maravilhados com cada volta que dá o desenho de uma simples letra manuscrita, e me tremem as mãos e me escorrem lágrimas pelos socalcos de uma face inóspita, onde murchas estão as rosas com espinhos – regadas por tristeza, alimentadas à luz do desespero – onde se encontram gravadas as marcas da enxada: cruel e impiedosa, com que lavraram sem dó as garras da tristeza.

                Hoje sinto-me apenas eu, um eu que, se pudesse, se deixava absorver pelo papel com vergonha de si mesmo. Um eu de letra tremida, insegura como este eu que escreve, hoje sinto-me uma folha amarrotada a arder envolto nas chamas desta fogueira de cinza negra que alimenta o riso maléfico e frio do meu velho inimigo: Consu Mismo.
                Como pude deixar que o mundo chegasse onde está hoje? Felizes na correria banal do dia-a-dia sem sequer se aperceber da alegria sintética pela qual se deixam envolver. Onde o dinheiro, a luxúria, a ilusão de serem donos da própria vida alimenta sorrisos fabricados em série, dando lugar à verdadeira essência do ser.
                E hoje escrevo-te a ti, entidade sem nome que me manténs olhando de frente para a vida. Chamam-me Deus, mas hoje sou apenas um minúsculo eu. Falhei, deixei-os cair em tentação. Mas como podia eu evitá-lo se tudo o que o vêem são imagens psicadélicas que lhes cegam o que neles há de mais puro e natural? O Consu Mismo impregnou-se nas suas vidas e tudo a que dão ouvidos é produto marcado pela vileza do seu olhar.
                Sabes que mais é que as crianças não sabem? As crianças e os adultos, a humanidade há muito se esqueceu do valor das palavras, dos sorrisos, dos olhares sinceros. À humanidade falta a essência das histórias que contava, na velha cadeira, a pulsar nas veias, quando a brancura da minha barba era ainda imaginação.

03/06/2011

7º Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 5º Jornada "Um pedaço em branco na linha da vida"





* Um pai está, desesperado, a procurar o seu filho entre os destroços de um avião acabado de cair. Prossiga a história. *

As minhas mãos calejadas contra a barba escondem as lágrimas… escorre-me sangue que nem sinto… é agudo o som da dor, mas nem o ouço… não vejo… grito mas nem o som me sai dos pulmões, que parecem estar vazios e insistem em permanecer assim… o tempo parece passar em câmara lenta… as luzes azuis e vermelhas passam-me pelo olhar embaciado e ofuscam-me a realidade que parece estremecer sinto algo ou talvez alguém tocar-me… e continuo a ver manchas pairar… Não! Não! – Estão a levar-me para longe… acho que estou deitado, a entrar para algo em tons de branco desmaiado – Não me levem! David! Não! David! Ninguém me ouve… David, onde estás? Filho…
Não me lembro de nada… o que aconteceu? Sons agudos de uma máquina a apitar num ritmo ensurdecedor da alma… Quem é esta gente? Uma jovem de cabelos loiros parece falar comigo… mas não ouço…
- O meu filho!
No entanto ninguém me parece compreender… algo estranho vem em direcção a mim… tudo parece começar a rodar à minha volta… - Parem! Esperem! Ouçam… - sinto que vou desmaiar…
Vejo uma silhueta escura ao longe, parece aproximar-se…
- David? Pensei que te tinha perdido… procurei por ti, gritei mas não obtive resposta e depois as luzes e tudo tremia e levaram-me para um sítio branco… eu disse para não me levarem sem ti, mas ninguém ouvia… juro que não te quis abandonar, juro! Perdoas-me?
Abraças-me… as lágrimas caem-me pelo rosto… passo a mão pelas tuas costas, mas não te consigo sentir… De súbito tudo desaparece numa névoa imensa... uma confusão de fios e apitos de máquinas estridentes instalou-se à minha volta…
- David?
 Uma enfermeira vem… olha-me nos olhos… será que entende o que estou a dizer? Entrega-me um papel, e eu pego na caneta na mão que sinto ser de outra pessoa… não me obedece, não a consigo controlar, mas a muito custo escrevo…
Neste momento encontro-me também a escrever… agora na minha velha secretária… a relembrar estes momentos em que tinha noção do meu corpo visto de fora… chegas ao pé de mim muito sorrateiro… posso não te ouvir, mas sinto as rodas da cadeira a rodar para junto de mim… e, como se lêssemos o pensamento um do outro, ambos olhamos para a parede… Pendurado está o papel, em que, numa letra contorcida pela linha sinuosa que desenha a vida, escrevi: “DAVID”…

(49 pontos em 60)