23/10/2010

TEMPOS DE OUTRORA - ALICE PAIVA (2º)





Hoje o dia está brilhante,
Sinto o desejo de escrever,
Para o passado reviver,
No infinito distante.

Poemas quero desenhar,
Cada traço no coração a pulsar,
Cada palavra a despontar,
Em cada veia, uma flor a desabrochar.

Hoje quero recordar,
Aqueles tempos de criança,
Em que podia voar,
Entre sorrisos de esperança.

Quero voltar a viver,
O passado no presente,
Quero ver-me a crescer,
Sonhando vir a ser gente.

Quero aquela fita no cabelo,
Os pés descalços na Terra,
Andando feliz pela Serra,
Vendo como o mundo é belo.

Sentir o vento de braços abertos,
Chegar a casa e sentar-me à lareira,
O pães a crescer, de baixo de panos cobertos,
E eu sonhando voar, como as fagulhas da fogueira.

As pedras na parede,
Contavam histórias de embalar,
Satisfaziam-me a sede,
De ter alguém com quem falar.

Cada pedra tinha um nome,
Tinha histórias de vida para contar,
A maior tinha filhos com fome,
Uma família de bocas para alimentar.

Todos os dias me falava,
Que não tinham o que comer,
E eu ia à socapa,
Devargar, sem ninguém me ver.

Tirava um pedaço de pão,
Acabado de cozer,
E ia dá-lo à Maria,
A pedra mãe que sabia sempre o que dizer.

E ela ficava contente,
E fazia-me companhia,
Ficávamos as duas junto à fogueira quente,
Ouvindo histórias de magia.

Tenho saudades da Maria,
E da fogueira com fagulhas a voar,
Vou pôr nas malas alegria,
E preparar-me para lá voltar.



Alice Paiva



19/10/2010

ESCREVO






Escrevo algo sem destino,
Pois não sei para onde ir,
Procuro nas palavras o caminho,
O trilho que irei seguir..

Escrevo, pois sou um alguém
Mas não tenho identidade,
Não tenho profissão, nem sou filho de ninguém
Mas tenho a essência de uma pessoa de verdade.

Escrevo sem saber a quem
Pois nem a mim me conheço
Escrevo porque  a minha alma se sente bem,
E a alma não tem preço.

Não sei se hei-de usar
Feminino ou masculino,
Um alguém estou a criar,
Para escrever algo genuíno.

14/10/2010

MEMÓRIAS - ALICE PAIVA (1º)





Sinto o frio lá fora
Vejo a chuva cair como um anjo que chora,
O cheiro da terra molhada
Transporta-me para uma recordação
De tempos de riso e gargalhada,
Que me aquece o coração.

Num abrir e fechar de olhos
Sustenho a respiração
E mergulho num mar de sonhos
Sinto, vivo, bebo, respiro, cada segundo, cada emoção.

Cheira-me a pão
A figos e nozes,
Lembro uma menina de saia de trapos,
E na pequena mão, uma saca de farrapos,
Correndo por montes e vales como gazelas velozes,
Deixando pegadas dos pés descalços no chão.

Pegadas que percorro agora com o sentimento,
Deixando a alma correr no passado ao sabor do vento,
Saboreando e aproveitando cada momento.

Lembro aquela menina inocente,
De olhos brilhantes e cabelo louro,
Corria nos montes despreocupada e contente,
Via o futuro com um reflexo de ouro.

Tinha nos lábios um sorriso de alegria
De amor para dar, de esperança,
No coração a magia,
A inocência de ser criança.

E gostava do vento, do Sol e da tempestade
Deixava-se levar na aventura,
Perdia-se no tempo,
Ria, chorava, corria, saltava,
Mas aquilo que demonstrava, sentia-o de verdade.

Era uma criança inocente,
De coração transparente,
Não escondia sentimentos,
Vivia à flor da pele todos os bons momentos.

Aproveitava a vida,
Sem pensar no amanhã, vivia o presente,
Fazia o próprio destino,
Brincava com a sorte como quem faz a roda e dá o pino
Não tinha medo de errar, ao cair, seguia em frente.

Era eu aquela menina
Da saia de trapos,
Que vivia o presente,
Com a saca de farrapos,
Corajosa e valente.



Alice Paiva

09/10/2010

EPIFÂNIA - CARLOS VIEIRA (3º)

Acordei mais uma vez, mas não apenas outra... mudei... estou diferente... segundo o que se diz por aí nesse mundo de vermes que rastejam como eu dentro de sorrisos vestidos, depois de adulto já não se cresce, mas tenho a sensação que a minha alma cresceu, os anjos saltaram felizes da cama para fora e deixaram que visse por uma fresta entre as nuvens um raio de Sol brilhar...

Não me lembro de ter sonhado, nunca, desde que comecei a preencher a alma com aquela alegria dissimulada... e agora que se acabou tive um sonho... como uma memória de criança inocente que me transportou para um mar não mais de tempestade, agora pacífico, de um sentimento a que "esses" habituados a viver chamam "esperança"... pelos menos é essa a vaga recordação que tenho de um sentimento tão distante até hoje...

Agora que olho para trás sinto desprezo, repugnância e nojo daquele verme que eu era... rastejava no chão sem força para me levantar, agarrava a garrafa e ficava feliz na ilusão que tinha conquistado um par de asas que me levassem a voar para além do horizonte deprimente em que vivia desequilibradamente, quando no fundo apenas tinha conseguido uma carta branca para a detrioração da minha própria alma... o meu espírito era corrosivo contra mim mesmo... agora em frente ao espelho grito-te a ti meu velho eu que estás preso nessa inércia "És desprezível, metes-me nojo!!"

Larguei a âncora no fundo do mar deprimente onde vives e ficaste agarrado a ela com a fraqueza e cobardia típicas desses parasitas sem futuro com tu...
Eu, o meu novo eu nadei com todas as forças libertei-me dessas cordas que me amarravam como tentáculos fortes de um  polvo... e cheguei à superfície... agora vejo que a vida terrena é linda, tal como aqueles contos que a mãe me contava em criança, junto à lareira... um leve cheiro a nozes e pão acabado de cozer vem-me à memória e fazem bater o meu coração com uma coisa que se bem me lembro se chama "emoção"...

Mas vou mudar, seguir em frente e encontrar as verdadeiras asas... no lugar da garrafa, ponho agora na fresta, não mais dos cobardes, mas dos apaixonados, folhas de papel e uma caneta... pois o meu refúgio será a escrita... não um refúgio da deprimência, agora um refúgio deste paraíso, para criar outro, ainda melhor...




Carlos Vieira

06/10/2010

O CÉU CONTINUA CHOROSO - CARLOS VIEIRA (2º)

Acordei... é de manhã... dizem que o céu está limpo, que o Sol brilha, que está bom tempo, mas eu só vejo nuvens negras, escuras, deprimidas e deprimentes, tal como a vida que levo. Para mim o céu continua a chorar, como a minha alma... eternamente...

Não vieste, não te tenho, nem sei se algum dia te vou poder ter nos meus braços, envolver-te em carinho e ver a tua aura brilhar, mais forte ainda que o Sol escondido por detrás destas nuvens tristes, os lençóis dos anjos chorosos, desesperados como eu... por vezes pergunto-me se existe mesmo Sol lá ao longe no reflexo da janela, ou se é apenas mais uma ilusão distante como o dia em que tu chegas e pintas de cor a minha vida com a tua aguarela...

Agarro-me à garrafa, vazia como a minha alma, como o meu coração, como a minha esperança de viver... as lágrimas de outros choros secaram, talvez tenham achado que já não fazias falta aqui, minhas eternas companheiras nesse peso de viver, quem me dera poder-me evaporar daqui como uma lágrima triste e sozinha... e molhada... sim, sinto-me molhado, encharcado, submerso em humilhação, cobardia, deprimência, fraqueza... sentimentos de alguém cobarde... o mesmo alguém de sempre... aquele verme rastejante que se deixa afundar no desespero, que já chegou aos confins do mais profundo oceano e continua a afundar-se na infinidade da tristeza...

Abria a fresta dos cobardes, mas está vazia... até a minha esperança dissimulada se esvaziou... o buraco é cada vez mais fundo e as cordas para subir partem-se a cada batimento do meu coração, despedaçado pelas lágrimas que continuam a embater no chão...

Pergunto se algum dia viràs e a pergunta ecoa no ar... o tapete já rompeu com tantas garras marcadas, garras do bicho que continua escondido dos olhos impiedosos do mundo... a resposta é um silêncio sinistro... ouço a garrafa rebolar pelas tábuas de madeira, até ele segue o seu caminho, apenas eu fico aqui parado, sozinho... deixo-me adormecer mais uma vez na esperança que o tempo deixe de correr, que a Terra se decida a deixar de girar e que... num dia perfeito que parece nunca vir... o meu coração deixe de bater...


Carlos Vieira

05/10/2010

DESESPERO - CARLOS VIEIRA (1º)

A porta range, como quem geme de puro rancor, entro no quarto, no ar um abafo, por entre o cheiro a licor… roupas pelo chão… escondendo a tristeza…
Olho pela janela, entre gotas de chuva que os anjos vão chorando, vejo nas estrelas o reflexo do teu olhar…
Mergulho em pensamentos… e deixo-me afundar… não resisto… entrego o meu corpo ao desejo, sem hesitar…
Tremo por dentro, quero sair desta prisão, grito, gemo, arranco os cabelos um por um caídos no chão… desisto… choro, choro como um bicho escondido dos olhos do mundo… por entre as tábuas do chão, abro a fresta, a mesma de sempre, a de mim cobarde, fraco, e tiro a garrafa para abafar a tristeza… ao desenroscar a tampa, mais um gemido ao de leve, triste e constrangido… lágrimas de outros choros escorrem por ela abaixo… embatem no chão como uma bomba, explodindo mais um pedaço do meu coração… as marcas das minhas unhas no tapete exprimem raiva, dor, revolta de viver… já não sei se é verdade… se é sonho ou pesadelo… sinto os teus lábios macios beijando-me o rosto, contra a minha barba áspera que pica, dura como o meu desgosto… sinto a tua mão a passar nas minhas costas ainda húmida… por entre as curvas da tua sensualidade escorrem os pingos de água, da chuva, não das lágrimas, não de ódio, de felicidade…
Chegaste da rua, de rodopiar feliz entre os salpicos da chuva, enquanto aqui a chuva é o choro de quem desespera, desiste, não luta… perdi as batalhas… perdi toda a guerra, conto os desgostos pelos cabelos no chão… sinto o desejo do teu corpo, do teu amor, da tua paixão…
Deixas-me um beijo num sopro quente e acolhedor… e eu falhado, choro no chão, desespero por sentir o teu doce aroma, por beber o bafo suave da tua respiração…
A última gota de licor cai pela garrafa, acabou, assim como a minha felicidade… tudo tem um fim… apenas este sofrimento dura para a eternidade…
Rendido de tantas derrotas, deixo-me adormecer… acordo amanhã… na esperança de te poder ter…



Carlos Vieira